‘Atypical’ e ‘Amor no Espectro’ ajudam a esclarecer o autismo

Dois seriados da Netflix se tornaram fundamentais para quebrar mitos e preconceitos sobre o autismo. E para os pais, sempre reforço que além das informações fisiológicas, existe um meio ambiente onde tudo isso floresce: e infelizmente esse meio é tóxico, machista e possessivo.

‘Atypical’ e ‘Amor no Espectro’ ajudam a esclarecer o autismo

Imagem promocional do seriado Atypical, disponível na Netflix.

Ricardo Pecego

Teoricamente o espectro do autismo traz consigo alguma dificuldade de interação e comunicação às pessoas que são diagnosticadas. Podemos dizer que as dificuldades se acentuam conforme a intensidade do autismo de cada indivíduo. Chegou-se a veicular, décadas atrás, quando se falava a respeito, que o autista vive num mundo paralelo e só seu. O dicionário Aurélio de 2010 define o autismo como um “desligamento da realidade exterior e criação de um mundo autônomo”.

Felizmente este paradigma já foi superado. Bastou que os terapeutas, médicos e psicólogos estudassem e tivessem mais contato para perceber que as pessoas dentro do espectro autista se comunicam, interagem e pertencem a este mundo, mas de maneiras singulares. Hoje em dia podem frequentar escolas convencionais, ter vida social e familiar muito proveitosa, com tendência a melhorar mais e mais conforme evoluirmos.

O autismo faz parte até mesmo da rotina dos filmes e séries que assistimos, isso serve bastante para quebrar os mitos sobre o tema (quando bem executado). A Netflix têm dois seriados em particular que são muito interessantes. A primeira que assisti foi Atypical, onde Sam, diagnosticado dentro do espectro, é um jovem que busca sua independência e seus sonhos. Ele trabalha, estuda e se apaixona. Realiza todas estas atividades da vida diária convencional com as peculiaridades que dão  sentido nome ao seriado. Suas reações atípicas servem para enxergarmos como ser comum e  convencional pode ser muito entediante.

Esse jeito diferente dos autistas nos serve como uma boa lição. Precisamos voltar a nos admirar com as belezas das coisas comuns, dar importância para os detalhes, enxergar como é maravilhoso não sermos iguais. Preferimos, guiados pela propaganda, seguir o mesmo padrão de vida – estuda, trabalha, aposenta – nesse meio tempo somos utilizados como consumidores, seguindo a ideia de quem tem mais, está mais perto da felicidade.

Basta observar a sua volta e verá: um smartphone, cartão de crédito ou de banco, televisão inteligente e um notebook. Obviamente falando do público que lê revistas literárias (como é o caso). A partir destes itens somos influenciados e temos possibilidade de adquirir tudo mais que achamos que nos identifica cultural, econômica e socialmente falando. Escolhemos os tipos de roupas, acessórios, decoração, mobiliário, leitura, calçados e por aí, até onde nossos recursos permitem (alguns chegam a extrapolar tais limites).

Na série fica bem evidente, no comportamento de Sam, que ele não aceita determinados padrões nossos, levando-o algumas vezes a situações de crise. As pessoas do entorno precisam se adaptar e aceitar a diferença dele, em virtude de sua deficiência e pelo amor que sentem. Esta é uma forma de empatia. Todos que o amam e que conhecem sua história, o ajudam a superar os obstáculos, pois enxergam que ele, devido a sua deficiência, nunca será páreo na competição capitalista. Caso Sam não fosse autista, estaria fadado a brigar pelo seu espaço, sem contar com a empatia das pessoas. Suas dificuldades seriam aceitas como falta de mérito. Seus “adversários” utilizariam isso para levar vantagem e superá-lo na vida.

Amor no espectro

A segunda série que destaco é uma das minhas séries preferidas de todos os tempos, Amor no Espectro. Uma produção australiana, que demonstra quanto uma geração de autistas luta em busca do amor. Aquelas pessoas que antes viviam mundos particulares, dão seus depoimentos em conversas com seus pais, amigos e demonstram quanto faz falta sentir-se amado (a) por um companheiro (a).

Nesta espécie de jogo da sedução é onde os autistas desmontam nossa sociedade construída sob o pilar do dinheiro, da imagem e da mentira (propaganda). Podemos enxergar que para o amor só é necessário ser sincero, gentil, e aberto para experiência de vivê-lo. Nos encontros que se sucedem nunca conseguimos prever o que sentem no contato com outro (a). Existe obviamente a decepção de um amor não correspondido.

Contudo a cordialidade com a qual se estabelece um rompimento, ou uma amizade invés do compromisso amoroso, é um exemplo para nós, pois hoje assistimos o feminicídiode jovens mulheres que sofrem desde o namorico, até o casamento com relacionamentos tóxicos e abusivos. Deveria partir de nós os convencionados “normais” o exemplo. Não existe entre os participantes a obsessão pelo belo, eles respeitam a célebre máxima: “A beleza está nos olhos de quem vê.”, e assim nos emocionamos nos diversos encontros, com a forma que cada uma dá, e aceita carinho. É lindo observar como as coisas triviais para nós encantam cada um dos autistas deste programa.

Tudo é feito de maneira nada sensacionalista, cercada de cuidado dos familiares, terapeutas e amigos. Tudo como deveria ser (sendo os terapeutas opcionais) na nossa vida convencional.

No meu tempo de adolescente, meus pais me deram dois livros falando do desenvolvimento do corpo, puberdade e sexualidade. Foi muito esclarecedor, mas o que eles não percebiam, pelo próprio contexto de sua criação, é que além das informações fisiológicas, existe um meio ambiente onde tudo isso floresce. Este meio é tóxico, machista e possessivo. Portanto além das informações das transformações do corpo é preciso preparar o jovem para encarar o meio. Se o seu filho não se enquadra no fenótipo idealizado pela propaganda, ele terá fracassos nessa trajetória do amor jovem. Pode ser que entre em depressão por isso. Pode ser que se jogue ferindo sua personalidade e se tornando tão tóxico como o ambiente. Por estas razões temos de cercar nossos filhos de cuidados, orientação e acompanhamentos na trajetória do amor.

Resta sonhar, lutar e comemorar todas as vezes que pessoas do mundo paralelo, como eram rotulados os autistas, sejam incluídos e presentes na nossa realidade. Precisamos enxergar e nos chocar com as suas reações e peculiaridades, que fatalmente nos afetarão nosso panorama de vida. Nossa forma convencional nos faz criar tantas máscaras, nos obriga a tantas manobras que nos distanciam da sinceridade, aceitação e da compreensão. Isso nos impede de respirar com todo vigor e viver com toda plenitude que poderíamos.

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