Chocolates, flores e cansaço
Desfazer a conexão entre o 8 de março e a imagem pueril de flores e chocolates não é simples. É preciso que as pessoas compreendam pauta.
Enfia as flores no **. Todos os anos, paralelamente às mensagens cor-de-rosa que celebram a delicadeza feminina, circulam memes na internet com mensagens nem um pouco singelas como essa, produzidas por gente que já está de saco cheio de explicar que 8 de março não é sobre flores ou chocolates.
Eu sempre rio nervosamente porque me identifico com esse ímpeto de mandar todos ao raio que os parta, mas é preciso respirar fundo e lembrar que mudanças culturais são sempre demoradas.
Já faz tempo que tenho iniciado minhas aulas na semana do 8 de março com algum tipo de provocação sobre não ser um dia para flores ou chocolate – o que sempre gera reações imediatas entre espanto a irritação.
O fato é que, por mais que pareça absurdo pra quem tem contato com movimentos sociais, ainda há um desconhecimento generalizado da história de lutas, greves, protestos e repressão que levaram à criação da data, no início do século XX.
Eu só fui entender a extensão desse desconhecimento quando saí da minha bolha meio intelectual, meio de esquerda e fui lecionar no Ensino Médio e em cursos de Ensino Superior como Ciências Contábeis e Administração.
Fui ouvida com choque todas as vezes que contei histórias como a das marchas de mulheres operárias no final do século XIX e do incêndio criminoso das trabalhadoras em uma fábrica estadunidense, em 1911. Igual espanto foi sempre gerado nas ocasiões em que marquei em linhas do tempo fatos absurdamente recentes no Brasil, como a conquista de direitos como votar (1934), trabalhar sem necessidade de permissão do marido (1962) ou cursar o Ensino Superior (1979).
Desfazer a conexão entre o 8 de março e a imagem pueril de flores e chocolates não é simples.
Faz muito tempo que o mercado usa a data para oferecer descontos, anunciados com flores e corações. Faz muito tempo que as empresas repetem a mesma homenagem às funcionárias e clientes. Ainda assim, isso é possível, pois, da mesma forma que foi possível para o mercado engolir uma data política e a transformar nesse discurso vazio, também é possível que a tomemos de volta.
Nesse sentido, foi muito bom ver este ano uma mudança na forma como o dia tem sido anunciado em muitos lugares: Dia Internacional de Luta das Mulheres.
Mas não basta mudar o nome, é preciso que as pessoas compreendam pauta – e é aí que se faz necessário o respirar fundo e explicar, ouvir, articular ideias e chamar pra junto.
Eu sei que pode ser frustrante ter que explicar a mesma coisa tantas vezes – assim como sei que é frustrante para os homens terem o seu bem-intencionado parabéns pelo seu dia usado como deixa para uma pequena aula de introdução ao feminismo. Ainda assim, a importância dessa conversa é grande demais para que ela seja suspensa pelo cansaço ou pelo constrangimento de quebrar a expectativa de quem nos oferece flores.
E se a sua empresa está fazendo a tradicional homenagem que esvazia o conteúdo da data, saiba que há sempre tempo para mudar. A partir do diálogo, é possível que, nos próximos anos, as tais homenagens sejam substituídas por ações relevantes para marcar a data.
Ao invés de chocolates, poderemos ter equidade salarial; ao invés de cartões cheios de brilho, talvez tenhamos a distribuição de cartilhas sobre assédio e violência de gênero; ao invés de flores na chegada ao trabalho, talvez tenhamos eventos corporativos voltados para o combate ao machismo; ao invés de mensagens sobre as super-mulheres, talvez tenhamos mensagens sobre divisão igualitária do serviço doméstico e da carga mental a ele relacionada; ao invés da exposição de fotografias das mulheres que fazem a empresa, talvez tenhamos essas mulheres fora da firma por um dia, envolvidas nas mobilizações políticas por direitos.
Provavelmente nada disso vai ocorrer em 2022, mas, mulheres, tenhamos em mente que, se as lutas feministas fossem abandonadas a cada revés, não estaríamos hoje escrevendo e publicando textos como este.
E, homens, antes de se chatearem com a chatice das feministas, coloquem-se em nosso lugar e conversem com seus pares porque, quando vocês passarem a apoiar nossa luta por direitos, ao invés de se sentirem atacados quando o assunto é desigualdade de gênero, certamente nós teremos muito menos motivos para sermos “chatas” e nenhuma de nós sentirá o impulso de mandar vocês enfiarem as flores no **.
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