A grande mídia e seu maniqueísmo de araque
Ao vender Lula e Bolsonaro como lados da mesma moeda, veículos de comunicação retomam discurso que culminou com eleição do atual presidente.
Anulação das sentenças do ex-presidente Lula o recoloca no jogo eleitoral e faz grande mídia tentar igualar figuras absolutamente desiguais. Foto:Rovena Rosa/Agência Brasil
No dia do segundo turno da eleição presidencial de 2018, o jornal O Estado de São Paulo, um dos símbolos da grande mídia, trouxe seu já célebre editorial, cujo título “Uma escolha muito difícil” colocava no mesmo patamar – negativo -, os dois candidatos ao pleito, Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL, à época).
Segundo o tradicionalmente conservador Estadão, era difícil tomar uma decisão entre o professor, ex-ministro da Saúde e ex-prefeito de São Paulo Haddad e o há 28 anos deputado federal e ferrenho defensor da ditadura e da tortura Jair Bolsonaro.
Embora não goste de preceitos democráticos, democraticamente Bolsonaro venceu a eleição daquele ano. Após assumir, com o passar das semanas, quanto mais absurdas eram as decisões de seu governo, mesmo antes da pandemia, mais a grande mídia parecia se dar conta de que o benefício da dúvida oferecido de maneira implícita ao líder do fã-clube de Donald Trump havia sido um problema.
O antipetismo midiático que moldou grande fatia do eleitorado desde o impeachment da ex-presidenta Dilma, somado a um suposto ceticismo fajuto – “ele só faz falar, não vai ter coragem de fazer” – terminou por alçar à presidência um cão raivoso que, em qualquer oportunidade, latia insanamente contra veículos que de uma maneira muito clara o ajudaram a se eleger.
Obviamente, não foi necessário muito esforço para que a maioria dos conglomerados de comunicação passassem a multiplicar suas críticas a Jair Bolsonaro. Algo que se tornou mais contundente com a chegada da pandemia e a (enfim?) percepção de que o país estava sendo governado por cidadão tão louco quanto Calígula, tão incendiário quanto Nero.
Eis que nos primeiros dez dias de março de 2021 o Brasil ultrapassa a marca dos 270 mil mortos por covid19, segue, por escolha própria, atrás do resto do mundo no quesito vacinação, vê os óbitos diários superarem a casa dos 2 mil e assiste a Bolsonaro ainda minimizar não apenas os cuidados, mas a dor de cada brasileiro. Dor esta, tida por ele, como “mimimi”.
E, neste momento em que o país se torna uma ameaça para o restante do mundo, uma decisão do ministro do STF Edson Fachin resolve anular todas as sentenças contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O que se assiste a partir daí é uma inacreditável preocupação da mídia com os supostos malefícios que a decisão de Fachin pode trazer para o país. Expõe-se um temor se o Brasil conseguirá ver bem sucedida uma terceira via, pleiteada por nomes como Luciano Huck, Sérgio Moro ou João Dória.
Sem usar esses termos diretamente, a grande mídia resgata com um ano e meio de antecedência a chamada “escolha muito difícil” do Estadão para um país que, no final das contas, escolheu alguém cujas decisões – ou ausência delas – assusta o mundo, provoca mortes e dissemina uma completa falta de esperança para a população.
Mais uma vez, o que se tenta vender é que existe um lado mal – formado pelo PT e por Bolsonaro – e um lado bom, formado por supostos moderados de centro direita ou direita (de preferência), liberais (pero no mucho) e privatistas.
Neste maniqueísmo de araque promovido por grande parte da imprensa, uma eventual disputa entre Lula (ou Haddad, ou qualquer outro que simbolize a esquerda) contra Bolsonaro será mais uma vez, aos olhos das grandes corporações, “uma escolha difícil”.
O que nos faz duvidar do caráter de quem considera estar no mesmo balaio quem defende vacinas e quem é contra elas, quem defende a ciência e quem é negacionista, quem apoia a democracia e quem a ameaça.
Que os nomes da centro e centro direita ponham as cartas na mesa. Se apresentem e deixem de ser meros personagens de especulação, que ainda não sabem se querem ser presidentes da República ou apresentadores de programa dominical. Que surjam nomes não negacionistas de qualquer esfera política.
Mas assistir à imprensa endossar um discurso de polarização no sentido de igualar figuras completamente desiguais não é apenas desonestidade intelectual e mau-caratismo. É uma total irresponsabilidade para com o país e quase que uma cumplicidade com as mortes e o negacionismo que tanto dizem condenar.
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