O vaso sanitário e a maternidade

Foi meu confidente dos primeiros transtornos alimentares e, posteriormente, tornou-se o travesseiro da embriaguez. Hoje, é o objeto para o qual converge a minha primeira angústia maternal: serei capaz de ensinar uma criança a utilizar o vaso sanitário apropriadamente?

O vaso sanitário e a maternidade

Do penico ao vaso sanitário digital e com controle remoto. Banheiro público em Seul, Coréia do Sul, ano de 2005. Foto: Paulo Rebêlo / Paradox Zero

Susana Barros

Bacia, privada, trono patente, bojo, retrete, sanita. Vaso sanitário. O objeto costumeiramente utilizado para satisfazer as necessidades fisiológicas do ser humano é certamente uma das mais engenhosas invenções de que se tem conhecimento e remonta, surpreendentemente, às cidades greco-romanas da antiguidade.

Ao longo dos séculos, algumas mudanças foram realizadas até chegarmos ao que habitualmente encontramos nos banheiros de dias atuais: um vaso de cerâmica, cuja boca ovalada é desenhada para garantir o conforto do utilizador.

Desde os tempos de menina, tenho uma ligação profunda com esse artefato e deduzo que ser filha de um comerciante especializado em materiais de construção tenha contribuído para o estabelecimento do deslumbramento.

O fascínio se estende ao sistema de esgoto, ou seja, o conjunto de tubos, reservatórios, peças de utilização, equipamentos e outros componentes destinados a conduzir água não potável e, em minha opinião, outro inventivo digno de nota.

A relação com o vaso sanitário sempre foi de cumplicidade, mesmo que, saudosamente, não esqueça o pequenino pinico, vermelho, orelhas de urso. Ali podia sentar-me por horas a fio e provavelmente experimentei alguma forma de luto ao ter que me despedir. Curiosamente, há tempos não esbarro em pinicos para crianças. Será que eles continuam existindo? É certo de que não tarda para que eu descubra.

O item que acompanhou a evolução dos meus prazeres anais e urológicos logo se transformou no confidente dos primeiros transtornos alimentares e, posteriormente, no travesseiro da embriaguez. Hoje, é o objeto para o qual converge a minha primeira angústia maternal.

Serei capaz de ensinar uma criança a utilizar o vaso sanitário apropriadamente?

A maioria dos seres humanos que conheci utiliza-o de modo adequado. Todos os outros animais com quem mantenho contato também parecem ter ido pelo mesmo caminho, o que por vezes me deixa meditativa: como foram capazes de aprender a urinar e defecar em cima das folhas do jornal de ontem antes mesmo que Skinner tocasse o terror?

Entendo que não é algo que se nasce sabendo, uma vez que, a exemplo da maioria das coisas, a determinação de qual seria o melhor lugar para realizar as necessidades fisiológicas é uma convenção cultural, social e, do mesmo modo como entoamos nossas orações, um evento que antropologia também estuda, ou pelo menos deveria. De todo modo, quase todos, um dia ou outro, parecem aprender.

Tal constatação não diminui nem um pouco minhas preocupações e cheguei, inclusive, a levar a questão para o divã, semanas antes de atentar-me para a lógica de que seios doloridos, menstruação atrasada e choro maníaco em cada episódio da série ‘This is Us’ são também sintomas de gravidez.

Eu não esperava e, olhando em retrocesso, imagino que a inquietação naquela sessão só pode ter significado que todo o meu corpo urgia para que ao menos eu fizesse um teste de farmácia, da mesma forma que o meu inconsciente, sabiamente, deve ter captado algum trauma ou medo infantil. O que teria acontecido?

Eventualmente descobri: psicólogos aptos a fazer regressão são bem mais caros e eu estou grávida, agora tenho outras prioridades.

O assunto, no entanto, continua atormentando. E desde os dois tracinhos rosas outros impasses apareceram. E se eu levar um tiro caminhando no meio da rua? E se eu escorregar tomando banho? Meus seios já não doem quanto antes, será que está tudo bem? Coca normal ou zero? Meu Deus, por que não consigo parar de beber Coca-Cola? E se criança não gostar de Lô Borges? Será que a moça do Bradesco um dia vai me perdoar por ter gritado com ela?

De uma hora para outra o Covid19 passou a ser o menor dos meus problemas. Minto. Agora ele é um problema a mais, pois estava ciente que os 27 cigarros que fumava ao dia eram mais do que suficientes para matar o vírus antes que o mesmo entrasse no meu organismo.

Bem lembrado, tem a questão do cigarro, também.

Só existe uma coisa que consegue me acalmar: ouvir o batimento cardíaco do bebê. Convenhamos, acarreta outro problema. Não vai demorar muito para que todos do hospital perto daqui de casa percebam que estou completamente maluca e, portanto, será necessário procurar hospitais mais afastados para que possa fazer o ultrassom almejado e assim sossegar pelas doze horas seguintes.

Seguramente você já deve ter escutado que a maternidade é a melhor das sensações. Não há nada como o período da gravidez a não ser, é claro, quando você finalmente segura o filho em seus braços. Quanto a isso, vou compartilhar o que venho vivenciado desde a descoberta: dia um, susto; dia dois, medo; dia três, cansaço; dia quatro, angústia; dia cinco, apreensão; dia seis, tristeza; dia nove, por que meus seios pararam de doer?

Estou radiante, não há o que questionar, ainda que o fantasma do vaso sanitário permaneça estável no ar.

1 Comentário

  1. Gláucio Ramos Pereira

    Interessante!

Deixe o seu comentário

[anr-captcha]