Os setênios, a descoberta, a independência e a crise do talento

Um relato pessoal de como a Teoria do Setênios influenciou uma brasileira imigrante na Irlanda, entre aulas, trabalhos e aprendizados.

Os setênios, a descoberta, a independência e a crise do talento

Foto de arquivo pessoal.

Susana Barros

Você já ouviu falar da Teoria do Setênios?

Em resumo, trata-se de um conceito ligado aos ciclos da vida e a descoberta de quem realmente somos. Esses ciclos são divididos de sete em sete anos, pois esse intervalo seria o tempo necessário para absorvermos todos os conhecimentos de um ciclo para que então possamos seguir adiante, prontos para encarar novos desafios.

A Teoria do Setênios é uma forma de ler e interpretar a vida, dividindo a nossa existência em torno desses ciclos. A escolha do sete não se deu por acaso, uma vez que é fruto de observações em torno do funcionamento da natureza e seus ritmos. Também é comprovado que as células do corpo humano se renovam completamente após sete anos, então, em tese, passado esse período, você realmente é outra pessoa.

De acordo com essa teoria, em 2007, havia acabado de entrar na fase em que o ‘eu’ tenta se estabilizar, pois se minha formação corporal estava completa, meu crescimento mental ainda se desenvolvia.

Estava começando, assim, a viver a liberdade idealizada na fase anterior. Tinha, ao embarcar para a Terra do Nunca (o nome que resolvi chamar a Irlanda) exatamente 21 anos (3×7), e era chegada a hora de deixar a casa dos pais e escrever a história com meu próprio punho, e sair do país materno me pareceu a alternativa mais fácil naquele momento.

Sou jornalista, ou pelo menos foi essa a qualificação profissional atribuída ao receber o diploma. Anteriormente, havia tentado psicologia, mas, após seis meses de curso, optei por escutar e conversar com pessoas, ao invés de escutar e conversar com pacientes.

Todavia, após a conclusão do curso, deixei para trás família, amigos, uma possível carreira e cruzei o Atlântico, sozinha. Sobre o país, só sabia que o Bono Vox nascera lá, e que os residentes costumavam beber muita cerveja. Era o suficiente.

Foram sete anos, quase exatos. A diferença é questão de poucos dias, para mais ou para menos, ou seja, de acordo com a teoria, um ciclo completo.

Desde o primeiro momento gostei do que vi e, em retribuição, a Terra do Nunca gostou de mim.

Gostava da parte da chuva, da ventania e do frio rachando os lábios e congelando a ponta dos dedos. O sol saía eventualmente e tinha, dessa forma, um excelente motivo para ficar contente.

Nos primeiros dias, talvez semanas, me rendi ao deslumbre de quem aprenderia sobre uma nova cultura, língua, hábitos e costumes, mas logo adicionei o destino ao dia a dia.

Setênios e Susana Barros - Sententia
Foto de arquivo pessoal.

A primeira palavra que aprendi foi lighter (isqueiro), como faria qualquer fumante que se preze. Depois umbrella (sombrinha), uma palavra que se repetia constantemente no rádio local, aliás, creio até que o mundo todo aprendeu essa. Em quatro ou cinco dias já sabia hangover (ressaca).

Na condição de imigrante com visto de estudante, era imperativo que frequentasse aulas e, inicialmente, escolhi aprender a língua local, a fim de aperfeiçoar o idioma. Eu era jovem, quase exótica, possuía um raciocínio rápido, e não tinha muitas ambições, afora pagar aluguel, alimentação, retocar as luzes do cabelo e folgar aos domingos. De vez em quando sobrava um trocado ou outro e podia até tomar uma cerveja e comprar Marlboro Lights.

Em pouco tempo consegui um ‘bico’ contando estoque em supermercados e em setembro comecei a trabalhar algumas horas por semana em uma lojinha popular onde tudo custava dois euros. Tudo mesmo, do pacote de absorventes às caixas de toblerones. E, curiosamente, a pergunta que os clientes mais faziam, dia após dia, era: “how much is this?”.

Ficava no caixa e repunha o estoque. O que ganhava me permitia pagar o aluguel e comer macarrão e sopas instantâneas.

Inicialmente, optei por dividir um apartamento com outras quatro pessoas: um rapaz francês, outro japonês, uma moça da Letônia e mais um rapaz das Ilhas Maurício, ilha que até então nem sabia que existia.

No começo do ano seguinte, porém, mudei de casa e reduzi pela metade o número de pessoas que precisava dar bom dia: Diana, a menina que comprava frutas para que eu pudesse comer algo além de sopas de caixinha, e Mark, o rapaz que transava com alemãs e me emprestava livros. Ambos eram típicos cidadãos ‘terranunquenses’ e me proporcionaram acesso privilegiado aos hábitos e costumes locais, além de um carinho familiar.

Desenvolvi a prática de caminhar para o trabalho e para as aulas, e mesmo após acostumar os olhos, apreciava a arquitetura gregoriana e as portas coloridas.

Quando as folhas alaranjadas tapetavam o chão, e os dias começavam a ficar curtos e cinzentos, parecia um preço baixo perante o já presenciado, e diante do que estava por vir, pois todas as estações tinham o seu encanto próprio, até o inverno, época em que tudo ficava muito alegre, uma vez que era tempo de Natal: branco, bucólico, nostálgico, e, acima de tudo, muito divertido, afinal, o Bono fazia sempre uma palhinha na Grafton Street.

Como nunca havia experimentado as quatro estações, foi tudo um barato. No lugar onde nasci só tem basicamente sol e, quando chuva, decretávamos feriado.

O povo da Terra do Nunca é alegre e religioso, porém, profano e supersticioso. Lá, é comum encontrarmos gnomos, duendes, fadas e bruxas, e o Halloween é levado muito a sério.

Eles adoram batatas, e há toda uma história por trás dessa predileção: a ‘Great Famine’, ou ‘A Grande Fome’ que provocou a morte de cerca de um milhão de pessoas e forçou mais de um milhão a emigrar. Pelo que entendi, um fungo contaminou em larga escala as batatas, e a Europa inteira foi atingida, porém, um terço de toda a população da Terra do Nunca dependia unicamente de batatas para sobreviver, e o problema foi exacerbado por vários fatores ligados à situação política, social e econômica.

Esse período perturbador entrou para a memória popular, e é corriqueiro dividir a história da Terra do Nunca entre os períodos “pré-fome” e “pós-fome”, sendo, portanto, compreensível a veneração às batatas, e, convenhamos, tubérculo melhor não há.

É comum que os ‘terranunquenses’ encerrem a noitada com uma porção de ‘fish and chips’, iguaria que poderíamos assemelhar ao nosso ‘sandubão’. Creio que essa é a receita para evitar a hangover, afinal, no outro dia eles – e elas – estão mais do que dispostos a uma nova pint.

Além das batatas, eles também gostam muito de salmão, Beef and Guinness Stew, porridge, e frequentemente comem um breakfast à base de salsichas, cogumelos, tomates, torradas, bacon e black pudding. E, lhe asseguro, tudo isso, e especialmente o café da manhã tradicional, é uma delícia!

Como bons bebedores que são, o café tradicional é feito com uísque, açúcar e chantilly. Na Terra do Nunca, todo dia é dia de pints, mas há um, em especial, que eles reservam para ir muito além da conta: o Saint Patrick’s Day é como o carnaval, só que sempre no dia 17 de março, e tem até desfile de algo parecido com uma escola de samba da quinta divisão maranhense.

É sabido que, a partir de 1987, a economia da Terra do Nunca melhorou e a década de 1990 é referência de um crescimento econômico substancial, e foi mais ou menos nesse período que o país aderiu ao euro.

Como consequência da prosperidade crescente, a Terra do Nunca se tornou um dos destinos mais procurados por imigrantes, sobretudo por parte dos poloneses, porém, em dado momento, todos, independentes de serem europeus ou não, pareciam bem-vindos.

Todavia, nada pode durar para sempre, não é mesmo? A crise financeira que começou em 2008 terminou dramaticamente esse boom. A Terra do Nunca experimentou profunda recessão, com desemprego, que dobrou durante 2009.

Os imigrantes já estavam lá, inclusive eu, e não pretendíamos sair, pois aquele lugar já era o nosso lar. E acredito que dá para imaginar o que pode acontecer com estrangeiros em países colapsados. Mas eu tive sorte. Quando o cartão foi recusado enquanto tentava pagar uma caixa de remédios para dor de dente, decidi fazer algo com relação ao dinheiro, e antes que o sol nascesse já estava distribuindo iogurte para os pedestres.

Gostaram do desempenho – comunicativa na medida exata – e me ofereceram a opção de distribuir tabloides todas as manhãs, de segunda à sexta, três horas ao dia, dava até para conciliar com o meio período na loja e com as aulas. A tarefa consistia exclusivamente em ficar parada entregando jornais a quem passasse na minha frente. Dessa vez, no entanto, foi além da conta, e pensei: “Quem diria, moça?! De jornalista à jornaleira”.

A grana era até boa, mas não aceitei. Nesse momento decidi que se a intenção consistia meramente em fazer da Terra do Nunca o meu lar, precisava encontrar um substituto para o ‘fucking job’.

Explico: ‘fucking job’ é aquela tarefa na qual você, tendo dinheiro, pagaria alguém para realizar em seu lugar. Não é necessária muita escolaridade, e é provável que a maioria dos serviços sejam, um dia, descartados ou desempenhados por máquinas e robôs. Criatividade e raciocínio rápido podem até ser bem-vindos, mas o essencial é ter paciência e obedecer a ordens, preferivelmente sem questionar.

A vantagem do fucking job é que ele normalmente fica no trabalho, não se carrega preocupações para casa, a não ser que você permaneça, após o expediente, se perguntando: “Que merda estou fazendo com a minha vida?!”.

Logo, mais que uma nova forma de conseguir dinheiro, procurava meios para alcançar certa realização pessoal. Desse modo, não tardou para que eu começasse a trabalhar em uma escola para imigrantes. E, em um ambiente onde não se domina completamente a língua e os costumes, exercer uma função mais mental que física ajuda a satisfazer a percepção da realidade.

O trabalho na escola foi, nesse sentido, oportuno. Quis o emprego e pedi, meses depois o diretor da escola concordou.

Planejava trabalhar na área administrativa e não tinha muita coisa em mente, esperava apenas o de 9h às 17h, segunda a sexta, e se tivesse uma cadeira e uma mesa já estaria no lucro. Entretanto, não sabia nem organizar arquivos (aparentemente há diversas formas de se fazer isso), também não entendia nada sobre administração ou gerenciamento, e, desse modo, o diretor percebeu que o que eu fazia melhor era conversar com pessoas: vendas.

Relutei, não queria o telefone tocando o tempo todo. Mas começou a tocar de qualquer jeito, e eu comecei a atender. Parecia nata, e eu era um achado.

Satisfeita com o meu novo desempenho, atendia imigrantes que, como eu, desejavam morar na Terra do Nunca.

Conheci latinos, asiáticos, gente do Paquistão, de tudo quanto é lugar que você possa imaginar. O trabalho resumia-se a vender cursos com o intuito de fornecer visto de estudante aos estrangeiros. A escola estava começando, e apesar de contar com donos conhecedores do mercado, eu não fazia a menor ideia sobre como convencer as pessoas a comprarem comigo. Entretanto, aconteceu. Conversávamos bastante, alguns vinham só para isso, e eu gostava. Vendia como quem vende limões na feira. E eu tinha até um cartão de visitas, no qual constava a minha função: College Administrator.

Portanto, tal qual o ano de 1987 para Terra do Nunca, de uma hora para a outra começou a dar tudo certo para mim também: amigos, dinheiro no banco, trabalho, domínio da língua, manequim 36, nenhuma amarra e cabeças ainda viravam quando eu entrava no bar.

Experimentava assim a condição de estrangeira, engenhosa e relativamente bem-sucedida. Circulava por novos bares, mais alternativos; frequentava os lugares que não ignoravam os imigrantes e até já lucravam com esse público.

Comecei a fazer o mesmo. Na escola, aos poucos, fui descobrindo maneiras de aumentar minha renda. O trabalho era fácil e conveniente. Para mim era simples: vendia a minha própria personagem. Idade certa no país certo.

Por volta desse período, comecei a conviver bem mais com os meus compatriotas, e é muito bom conhecer uma cultura nova, outros costumes, hábitos, enfim, tudo o que já foi dito até agora. Porém também é muito massa quando você encontra pessoas do mesmo país de origem. É como receber um abraço apertado e bem demorado.

Coincidentemente, o meu tempo na Terra do Nunca se esgotava, faltava pouco para que eu completasse os sete anos, e eu sabia, a essa altura, que de uma forma ou de outra, o universo iria conspirar para que eu retornasse ao Brasil.

Logo após a experiência, quis acreditar que o meu tempo na Irlanda foram anos mornos e ausentes de sentido, quando, na verdade, a Terra do Nunca me deu tudo o que pedi.

Além disso, hoje concluo que, ao me posicionar exilada, estive também protegida. Quando perguntam se eu fiz tal coisa, ou conheci tal lugar, por vezes machuca pensar não ter aproveitado o quanto deveria e ainda ter estado ausente do convívio com a família e amigos. E eu perdi muita coisa! Desde os shows de despedida do Exaltasamba a Carminha, em Avenida Brasil.

Apesar disso, vivi como quem viveria para sempre e me sentia confortável em ser quem eu era a maior parte do tempo.

Um dia após o outro, cerveja para animar os dias nublados, me parecia uma boa maneira de se viver. E, sincronicidades à parte, retornei ao Brasil justamente no dia dos 7 x 1, e, sim, acredito que a responsabilidade é totalmente minha e fique à vontade para me culpar.

Afinal, como dito, eu tive sorte e devo muito ao número sete, portanto, nada mais natural que, em virtude do alinhamento planetário, fosse presentada com um diazinho de azar.

3 Comentários

  1. BENISE BARROS LAPPRAND

    Excelente relato.

  2. Andréa Mousinho

    Adorei,
    Eu e reli.
    Você escreve muito bem, não dá vontade de parar. Quando acaba o texto já fico esperando o próximo.
    Show! Amei! Parabéns!
    Ansiosa pelo próximo.
    Bjs carinhosos

  3. Gláucio Ramos Pereira

    Fantástico!

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