Literatura como porta voz da resistência: narrativa e poesia de Carolina de Jesus

Quando escritores pertencentes a outros grupos sociais passaram a acessar o campo da literatura brasileira e expor as suas realidades dentro de suas narrativas, foi considerado um ato de resistência contra os perfis dominantes. E não temos melhor exemplo para análise do que o livro Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus.

Literatura como porta voz da resistência: narrativa e poesia de Carolina de Jesus

Foto: Arquivo Nacional / Domínio Público

Gabriela Carneiro Maciel
Resistência em Carolina de Jesus | Arquivo Nacional
Foto: Arquivo Nacional / Domínio Público

A resistência consiste na ação ou efeito de resistir, ou seja, o ato de se contrapor a um poder alheio. Segundo Bosi (1996), a resistência se encontra inteiramente ligada à ética e não a estética, mas houve a junção da arte, da ética e da política e, a partir de tal ligação, o ato de resistir passou a fazer parte das expressões artísticas, o que ocasionou o surgimento da narrativa e da poesia de resistência.

O ato de resistir passou a ser utilizada nas expressões artísticas a partir do ano de 1930 até 1950, quando os intelectuais da época se envolveram na luta contra o nazismo, salazarismo, fascismo e o franquismo e, por meio disso, narraram a experiência que a sociedade experimentava naquele momento pós-guerra.

Dotados de liberdade imaginativa, os autores de romance e ficção, ao construir a narrativa, não apenas se utilizam dos fatos presentes numa dada realidade, mas incluem também a fantasia, a qual lhes permite criar várias situações que são impossíveis de acontecer no mundo real. No processo de criação da narrativa, o narrador a constrói de acordo com as suas aspirações e assim desenvolve representações do bem, do mal e de valores opostos e diante disso, Bosi (1996, p. 15) afirma que “graças à exploração das técnicas de foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia de resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio”.

A literatura de resistência expõe fatos da realidade, a rotina dos meios de alienação, o inverso de uma vida plena e digna, a fim de afrontar e tirar o sossego da força dominante, desse modo, Bosi (1996, p. 26) afirma que a resistência enquanto literatura “…é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico”. Quando escritores pertencentes a outros grupos sociais — moradores de periferias, negros, índios, mulheres, a classe trabalhadora e pobre — passaram a acessar o campo da literatura brasileira e expor as suas realidades dentro de suas narrativas, a partir disso esse fato foi considerado um ato de resistência contra os perfis dominantes que atuaram por muito tempo nesse campo literário.

Essa resistência da literatura de autoria dos grupos marginalizados tem que continuar incomodando a força dominante, pois é dessa forma que se dar “a tensão presente em textos de escritores e escritoras provenientes de outros seguimentos sociais, que têm de se contrapor as essas representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a legitimidade de sua própria construção” (DALCASTAGNÉ, 2007, p. 18). A área da literatura possui várias formas de resistência, que acontece por vários meios bem como a autoria negra, feminina, de pessoas pobres e das que vivem nas periferias; ocorre através do empenho de humildes livrarias e editoras, entre outros.

A escrita resistente de Carolina Maria de Jesus

Dentre os autores e autoras que constrói uma narrativa resistente, está Carolina Maria de Jesus, com o seu livro Quarto de despejo: o diário de uma favelada, de 1960. A autora se apodera da escrita, que até então era um campo ocupado pelos autores pertencente aos perfis dominantes da sociedade, e expõe a voz de uma escritora negra, pobre e residente da favela. De início, ao começar a escrever, Carolina já tinha em si a consciência de dois aspectos: a inferioridade que à cercava e a necessidade de se legitimar como autora para conceber a representação da sua realidade de favelada e a de si mesma.

A consciência que a escritora possuía, se refere ao sentimento doloroso de saber o lugar que ocupava no mundo e “que subsiste mesmo entre os que se recusam a aceitar tais limites -, mas está presente em determinados constrangimentos impostos ao próprio discurso” (DALCASTAGNÉ, 2007, p. 22). Carolina estava a todo momento entendida dos obstáculos que rodeava sua existência, mas, mesmo assim, os enfrentava.  A autora atribui-se a autoridade da escrita e exerceia sua função de intelectual a fim de expor para a sociedade o contexto miserável em que estava inserida, por meio da literatura. Com essa narrativa acerca da vida de quem vivem à margem, Teixeira (2016, p. 282) afirma que a escrita de Carolina “pode ser considerada um divisor de águas na prosa literária brasileira, pois antes dela não há registro de uma inscrição autoral negra e feminina articulando na palavra cotidiana a experiência do urbano”. E se atribuindo a esse poder da escrita que os narradores, assim como Carolina, transferem para as narrativas de suas obras o seu ato de resistência contra os valores e antivalores vigentes no seu contexto social e político.

Os cadernos reciclados que Carolina utilizava, assim como ela mesma, também foram despejados, mas se tornaram um suporte para o empoderamento da autora e para a construção das narrativas e poesias de resistência. Assim, os seus textos tecem dois elementos: forma e o conteúdo (MIRANDA, 2015). A “forma estética” dos textos corresponde às vivências de Carolina, que foram documentadas desde o padrão do suporte utilizado para construção da narrativa. E o conteúdo diz respeito ao discurso utilizado por Carolina, sendo esse, relativos às questões raciais, a situações de desigualdades concebidas desde a colonização e à pobreza.

A escrita resistente de Carolina mostra o poder do discurso que a mesma conquistou, representa as relações sociais, esculpe uma personalidade e uma trajetória de vida que está inserida no enredo das conexões socioculturais e nas identidades grupais. Com isso, a autora manifesta por meio do enfrentamento e da superação dos obstáculos sociais e internos, a sua resistência, autonomia e seu empoderamento como o efeito causado pelas modificações internas e externas que ocorreram na sua vida.

A leitura e a escrita como fuga da realidade

A escrita de diários e cartas marcou muito o início da escrita feminina, pois estes eram os únicos gêneros textuais permitidos para a escrita feminina e neles eram abordados os acontecimentos do dia, a rotina doméstica e raramente as questões relacionadas ao corpo e os sentimentos (NASCIMENTO, 2015), e eram por meio desses momentos de escrita que muitas fugiam, por alguns instantes, da realidade em que viviam e, além disso, tinham a oportunidade de se verem como sujeito. Foi desse gênero textual, o diário, que Carolina se utilizou para contar a suas vivências, sentimentos, se perceber como sujeito e se tornar resistente.

No decorrer da narrativa do diário de Carolina, se percebe que a leitura e a escrita estão muito presente na sua vida. O tempo livre que surge na rotina da autora, em muitos momentos, são preenchidos com a escrita ou a leitura e são esses dois atos que à transfere para outro lugar, como ocorre na seguinte passagem:

Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia. (…) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela (JESUS, 2014, p. 58).

Nessa passagem, Carolina declara a necessidade de se transportar para outro lugar que seja totalmente diferente da sua realidade, sendo a escrita, o meio escolhido para acessar esse outro mundo e que lhe permite experimentar poucos momentos de alegria e paz. A leitura, assim como a escrita é também muito presente em seus dias, a autora a utiliza como um meio de encontrar calmaria, relaxamento e como uma boa maneira de terminar o seu dia, pois se trata de algo positivo que Carolina se permite ter acesso: “Fui catar papel, mas estava indisposta […]. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem” (JESUS, 2014, p. 24).

Há um momento na narrativa do seu diário em que Carolina se depara com uma situação que poderá excluir a leitura e escrita de sua existência, quando Seu Manoel — um comerciante que nutre afeto por ela — declara que deseja se casar com ela, mas a autora logo impõe barreiras diante dessa situação, pois não quer abandonar a sua peixão pela escrita e leitura e nem pretende dividir seu tempo dedicado a tais prática, como mostra a seguinte reflexão:

O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, o homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal (JESUS, 2014, p. 49).

Diante disso, talvez nessa reflexão Carolina “esteja apontando para a impossibilidade de compartilhar leitura, escrita e união afetiva. Nesse sentido, elege como única companhia em seu leito os livros e os cadernos achados nos lixos da cidade nos quais anota suas reflexões e angústias” (LOPES, 2018, p. 03). O ato da leitura e escrita se traduz, para a vida de Carolina, como a conquista de dois poderes que se encontravam nas mãos das classes dominantes, e a mesma, que pouco frequentou a escola possuiu a dádiva de tê-los em sua vida. Carolina tinha uma grande paixão por ambos, pois estes lhes permitia fugir se sua triste realidade, sonhar com um lugar melhor e resistir aos valores que era contra a sua escrita e sua existência.

Em suma, diante do que foi exposto no presente texto, considera-se que a leitura e escrita desempenharam um papel muito importante na trajetória de Carolina Maria de Jesus, pois esses dois atos foram responsáveis por promover transformações na vida da autora. A escrita é porta voz de Carolina, é seu meio de denunciar e resistir, já a leitura lhe resgata, por alguns instantes, da sua dura realidade e lhe permite sonhar e acessar um outro lugar. É dessa maneira que a literatura, tanto escrita quanto na leitura, consiste nesse lugar de resistência e fuga da realidade para a autora e para muitos outros escritores e escritoras que se encontram a margem da sociedade.

2 Comentários

  1. Dil ara carneiro

    Tenho orgulho e admiração pela pessoa que vc se tornou! Parabéns! Que vc continue sempre essa mulher maravilhosa e encantadora! Um ser admirável demais! Te amo gaby

  2. Pe Denivaldo dos Santos, SDV

    Parabéns! Escrever é uma arte e escrever com profundidade é fruto de capacidade e inteligência.

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