A irritação de São João e a maturidade do saudosismo
Como comemorar, após dois anos de pacífico silêncio, a volta dos fogos de artifício e dos rojões? De novo, é como se as pessoas não tivessem bebê ou animais de estimação em casa. Ou é a maturidade deixando a gente rabugenta e saudosista?
Foto: Lucas Oliveira / Pexels / reprodução livre
E não é que o amargo é mesmo o sabor da maturidade? Em parte porque o enraizamento dos hábitos sociais e o desenvolvimento corporal produzem alterações fisiológicas com o passar dos anos, resultando em interferências ao nosso sistema gustativo.
A saber: apenas um terço dos botões gustativos infantis ainda estão presentes na boca dos adultos, o que intensifica a apreciação progressiva pelo café forte e sem açúcar. Ou pelo mousse de maracujá, se bem que o maracujá mais se aproxima do azedo, já que, a rigor, é acidulado, ou seja, levemente ácido. Como os bons vinhos tintos e como os de pior qualidade também.
Mas a afeição pelo amargo não se dá somente pela apreciação aos gostos intensos que a maturidade nos proporciona. O amargo que aqui planejo discorrer está ligado ao doce sabor do mau humor e aos que desenvolveram uma língua ainda mais apurada, ao açucarado sarcasmo. Pois sim, é um sutil paradoxo, um leve contraste gustativo.
Vou direto ao ponto: eu odeio São João. E odeio como um velho ranzinza odeia. Pois odeio com porquês específicos e embasados, mas, sobretudo, porque é gostoso odiar.
E aqui me refiro às festividades juninas. Quanto ao São João em si, que pouco conheço, mas se é santo, deve ser porque é um cara legal, não tenho nada contra, e o badalar do sino na igreja aqui ao lado é o que menos irrita.
Mas como comemorar, após dois anos de pacífico silêncio, a volta dos fogos de artifício e dos rojões? Esse povo não tem bebê ou animais de estimação?!
E porque as pessoas, intencionalmente, se arrumam para ficarem feias? Pois se é de comum acordo que Popis era a bonita, enquanto Chiquinha era a esquisita e irritante.
E cá estou eu, esquisita e irritante, já que nem as comidas de milho, um negócio meio doce, meio salgado, me salvam a data. Na minha terra tem pamonha e canjica até no sábado de carnaval, e eu vou lá me entusiasmar por comer milho em junho? Se quando bem entendo posso dar descarga, e adeus, ao grão inteiro, e isso sim é curioso.
É certo que nem sempre fui assim. Pois fui criança, e criança tem memória afetiva até do que é ruim. Você sabe que foi horrível, mas é só colocar um filtro envelhecido na lembrança e a memória se torna, no mínimo, conceitual.
Mas, em verdade, tive um São João doce quando criança. Caminhei pelas ruas de minha terra na noite de São João a fim de contar fogueiras. E sim, essa é uma nostalgia das boas. E não tinha essa coisa de se sentir excluída na quadrilha, se tínhamos que formar par com quem a tia determinava. Eu até ansiava por esse período do ano, como o ensaio para quadrilha significava não ter aula.
E vejam só, como um negócio que se chama quadrilha pode prestar? Anarriê, Alavantú! Se ao menos fosse “se achegue”, “se afaste”. Olha a cobra! Que cobra? Se hoje se dança quadrilha é no asfalto?
Aí vem uma mineira, toda contente, me dizer que nunca tinha visto um São João raiz! Minha senhora, eu deveria ter dito, está vendo aquela mega estrutura que chamam de palco? Isso aqui é um show de forró! Tem durante o ano todo! Isso porque aqui é bairro de classe média, vai lá na comunidade que deve estar rolando um funk, que, cá entre nós, deve ser bem mais característico e sim, tem quadrilha que se preze.
Cadê a barraca do beijo? E o correio elegante? E o leilão de frango assado que só os padres sabem como fazer? E o bingo? Dois patinhos na lagoa? A idade de Cristo? Aquilo, sim, era São João raiz.
Então vai que minha amargura é fruto do saudosismo, que, aliás, só pode ser coisa de velho. E velho chato. Pois agora, o antigamente, é tolerável. Se tínhamos as mandingas de amor. E é uma pena que as simpatias nem de longe contribuíram para a compreensão do sincretismo religioso.
Assim, reitero: nada escapa. E Viva o São João. Porque sem ele, não apreciaria o prazer maduro que se adquire ao reclamar.
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