Limites do poder de polícia do Estado durante a pandemia de Covid19
Até onde a administração pública tem competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em meio a pandemia?
Comércio e atividades consideradas não essenciais fecham as portas durante lockdown no Distrito Federal. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
É notório que a pandemia do novo coronavírus provocou uma instabilidade global, indo muito além da imprevisibilidade da doença e atingindo também mudanças agressivas na cultura mundial. Nesse contexto, o Estado entra como um dispositivo de controle para impor aos cidadãos medidas protetivas para impedir a proliferação exponencial do vírus.
Entretanto, a questão a ser debatida é: pode o Estado obrigar determinadas ações que, mesmo em benefício do interesse público e, principalmente, da saúde mundial, sejam realizadas contra a vontade do indivíduo por meio de sua função coercitiva?
A questão é se esse ato de imposição de medidas restritivas aos indivíduos irá ferir a liberdade humana e os direitos humanos. É nesta fase que entra o poder de polícia, uma prerrogativa do Direito que, por meio da autorização da lei, busca com a Administração Pública restringir e limitar determinadas ações e liberdades individuais em favor do interesse coletivo.
O poder de polícia diz respeito à faculdade que a Administração Pública tem de condicionar e restringir o uso de bens, atividades e direitos fundamentais visando o interesse coletivo. Contudo, ele está limitado juridicamente, isto é, a Administração Pública vai agir em função da discricionariedade administrativa que, através do juízo de oportunidade e conveniência, vai fazer um balanceamento de interesses conflitantes.
Assim, ao decretar medidas, elas devem estar dentro do âmbito da razoabilidade, de modo que, se essas forem ultrapassadas, há uma arbitrariedade, tornando o ato nulo.
Dessa forma, cabe à Administração Pública realizar o balanceamento entre direitos fundamentais conflitantes: o direito social à saúde, que é uma garantia estatal, e o direito de ir e vir e a liberdade econômica. Portanto, a decisão deve ser averiguada, de modo a evitar a desproporcionalidade e irrazoabilidade.
Assim, é estabelecido na Constituição Federal, no seu Artigo 196:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Com isso, ao haver direitos conflitantes, a Administração Pública vai buscar, através do princípio da concordância prática, harmonizar tais direitos para que eles possam conviver sem que haja a sobreposição de um, em detrimento do outro, tomando como fundamento a ideia de igualdade de valor dos bens constitucionais. Desse modo, cada direito em conflito terá uma restrição, que será realizada de forma razoável para que não haja arbitrariedade nas medidas decretadas pelo poder de polícia.
Segundo o jurista brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet:
“Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas.”
Dessa forma, a criação de atos normativos que limitem as liberdades de locomoção e econômica, por exemplo, passa a ser permitida dentro do território nacional, de modo a preservar e garantir outro direito, como o direito à saúde. Isso ocorre somente devido ao estado de calamidade instaurado, dado que em uma situação normal não seria constitucional, pois o direito de ir e vir é categorizado como fundamental, conforme o art. 5º, XV.
Diante do contexto da possibilidade de intervenção da Administração Pública na esfera pessoal dos indivíduos, em razão da coletividade, é importante que algumas medidas estejam previstas no texto constitucional como situações extraordinárias.
Percebe-se que há um conjunto de regras destinadas às circunstâncias inesperadas, que só poderão ser acionadas de maneira transitória e cuja utilização somente se justifica diante dos riscos do Estado de Direito ao princípio democrático.
Ao mesmo tempo, não é necessário a decretação do Estado de Defesa ou de Sítio para instituir o lockdown, tendo em vista que, tais atos dependem exclusivamente da promulgação do Presidente da República e estão diretamente relacionados com questões políticas, o que se difere do Estado de Calamidade.
Desse modo, há possibilidade de os entes decretarem atos até mesmo pelo reconhecimento do STF e da Lei nº 13.979/2020.
O professor Gustavo Binenbojm, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ressalta que:
(…) o Supremo Tribunal Federal reconheceu que Estados e municípios têm competência para adotar providências de polícia administrativa sanitária em defesa da saúde pública. Ou seja: os entes podem restringir a circulação de pessoas, mas não no nível dos regimes de exceção previstos na Constituição.
Logo, todas as medidas decretadas durante o período da pandemia foram possíveis devido ao estado de calamidade que, juntamente com o poder de polícia, deu autorização à Administração Pública para decretar medidas como o lockdown para que seja garantido o isolamento social, por exemplo.
Nota-se, dessa forma, que apesar de haver restrições em relação ao direito fundamental que garante a livre circulação de pessoas, essas proibições realizadas pelo poder de polícia têm como finalidade garantir o bem-estar social, visando impedir práticas que contribuam para a proliferação e impacto do vírus, como a aglomeração.
Medidas de prevenção são necessárias para diminuir o risco às pessoas já que, por mais que um direito esteja sendo restringido, essa ação é em benefício de toda a população.
Portanto, o desenvolvimento desse tema, que envolve a realidade atual do coronavírus, facilita a compreensão a respeito da importância da atuação do poder de polícia no cotidiano. É visível que, por mais que haja a restrição momentânea de determinados direitos fundamentais, há uma justificativa válida, que é a busca pela proteção e garantia de outro direito fundamental, que é essencial à vida humana: o direito à saúde.
* artigo em coautoria com Mariana Hora e Mariane Maciel.
4 Comentários
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Muito bem escrito
Muito Atual!! Importantíssimo 👏🏻
Lindas palavras
Texto sensacional!