Trabalhadores, uni-vos 4.0
Tecnologias disruptivas apoiam com a lógica do capital. Está na hora de o mundo do trabalho se movimentar em busca de um contraponto à altura.
Sujeito de direitos ou empreendedor individual? Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
Decisões no sistema judiciário de dois países europeus caminham no mesmo sentido em relação às plataformas de aplicativo. A Suprema Corte do Reino Unido reforçou entendimento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de que os trabalhadores / motoristas que atendem pela Uber são funcionários da empresa. Têm direito a férias, repouso semanal e outros benefícios. Em Milão, a procuradoria-geral exigiu das empresas de entregas a contratação de 60 mil pessoas. Em outro processo, analisa se a empresa Uber cometeu algum ilícito fiscal.
Considerar os trabalhadores, na ponta da operação, como empreendedores sujeitos a risco e não a direitos, é uma violência. Empresas como Uber, 99, IFood, Rappi, entre tantas pelo mundo, são tecnologias que oferecem uma grande facilidade – o carro vai estar onde você quer ou levar seu pedido ao seu endereço – em relação ao modelo anterior. Em tese, você ganha mais facilidade e mantém o custo, ou até tem um custo menor. Parece magia e você rende graças à tecnologia. No entanto, alguém saiu perdendo.
O sistema britânico decidiu, a procuradoria milanesa está na pressão e em tantos lugares do planeta ganha corpo um movimento contrário ao óbvio: quem trabalha oferecendo sua força para um grande sistema deve ter assegurado os seus direitos básicos. Isso não é novo e a pergunta é em qual momento da história o dono da força pessoal passou a ser visto com um trabalhador sem direitos?
Se o assunto é direito trabalhista, vale rememorar como foi que as organizações sindicais entraram na história do trabalho. Chegaram como um sinal de vida reativo à revolução industrial. Alguns movimentos tateavam, como o ludismo. Esta corrente pensou: como as máquinas substituíam a força de trabalho, vamos destruir as engenhocas. Se formos transpor para o século 21, é algo como usar mapas de papel e voltar a ouvir CDs. Depois, alguém sacou o mote: “juntos somos mais fortes”. Em seguida, vêm as primeiras estruturas sindicais. Não aconteceu em linha reta: teve muita luta rude, sangue, mortes aos montes e prejuízos para o capital. O direito à sindicalização era subversão braba, até se tornar uma bandeira política, com propostas radicais e, à sombra da foice e do martelo, a burguesia cheirosa aceitar ceder alguns anéis, desde que o alicate ficasse longe dos dedos (e dos outros anéis).
Dá para ver que o anarquismo, o radicalismo e o comunismo fizeram a mão invisível do capital afrouxar o aperto. Fizeram mais: quando o manifesto de Karl Marx e Friedrich Engels deixou de ser teoria e começou a ser executado na revolução russa, as ideias à esquerda se tornaram uma espécie de mapa de sobrevivência para o capitalismo. Em décadas, o sindicalismo virou boa ideia (foi adotado pelos patrões), vieram a redução de jornadas, as férias e o descanso remunerado, salário mínimo, condições dignas, preocupação com a segurança no trabalho e outros avanços, como bem estar social para as massas que vivem em países com IDH alto. A ameaça à esquerda ajustou a visão de exploradores, aliviou a pressão e fez o modelo econômico baseado na ganância parecer mais humano. Exagero: só fez parecer um pouco humano. Os próximos capítulos se deram com o fim do bloco bloco soviético, o muro de Berlim caiu, o século acabou e o baile seguiu.
De volta à questão lá de cima: quando foi que o trabalhador deixou de ser sujeito de direitos e passou a ser apertado e espremido à espera de se tornar bagaço descartável? Em uma análise rápida, as tecnologias disruptivas têm sua parte nesta história. A popularização do e-mail (lembram?) está diretamente associada ao fim da atividade de carteiro e, antes do carteiro, tantos profissionais, veículos e estruturas para se separar envelopes e mais envelopes. O e-mail é a mãe das transformações (disrupções?) que levaram a pó grandes negócios e todos os profissionais vinculados a eles. De radialistas a motoristas, de técnicos de gravadoras a representantes comerciais, grande parte dos envolvidos nos negócios da comunicação, da educação, indústrias de transformação, analistas comerciais e muito mais. A lista é dinâmica e ainda está em fase de crescimento. O fenômeno gerou um excesso de mão de obra disponível (e vulnerável), que fez valer a lei da oferta e da procura.
É um cenário semelhante à desvalorização do trabalho nas primeiras décadas da revolução industrial, quando homens, mulheres e crianças precisavam trabalhar mais de doze horas, tinham remuneração insuficiente para suas necessidades básicas e o ambiente social era de abismos entre classes. Se não há como vetar a lei da oferta e procura, não há como frear a luta de classes. Os despossuídos de direitos mínimos em algum momento vão mostrar os dentes e o desconforto que a desumanidade produz. Precisam de uma organização – como os sindicatos foram, há 200 anos. Mas história não se repete. O modelo nos moldes do sindicalismo clássico se tornou anacrônico. São líderes com cabeças movidas a pistão propondo ideias para problemas gerados por algoritmos. O que quer que venha a ser uma organização da massa explorada 4.0, precisa ser tão inovadora como o TikTok é.
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