Amar sem ver é bobagem

O momento no qual eu descobri que não existe "dedo verde" foi também quando percebi que o amor não é cego. Quem ama com coragem é capaz de enxergar. E para ser jardineiro (de plantas e pessoas) é preciso entender a visão que não pertence aos olhos.

Amar sem ver é bobagem

Foto: Paulo Rebêlo / Paradox Zero / Reprodução autorizada.

Beatriz Braga

Sempre achei as plantas bonitas, mas nunca tive talento para amá-las.

A planta adotada tinha destino certo e cruel. Se tivessem direito de escolha, teria uma foto minha nas sementeiras: “melhor evitar”.

Desisti, para benefício geral, de ser jardineira.

Só que, na quarentena, um apartamento carece de vida. A não-humana, digo. Aquela não corrompida. A vida que não destrói ou polui – a que conserta, purifica.

Decidi tentar mais uma vez. Ignorei os jarros secos em cima da geladeira, provas de homicídios passados, e saudei duas novas inquilinas.

Dessa vez, dei-lhes nomes. Vi vídeos no youtube. Escrevi num caderno todas as dicas. Fiz promessas em voz alta. Deixei-as onde pudessem ser vistas.

Foi assim que percebi, nas primeiras horas do dia, quando Zelda amanheceu cabisbaixa. Ou quando Sun, a amarelinha, apareceu com a terra esbranquiçada.

Agi rápido. Fiz testes. Desvendei a rotina e os seus cantos preferidos. Li a linguagem das folhas. Flagrei-as se movendo em direção ao sol. Percebi, sorrindo, que ficavam mais bonitas quando juntas.

Não faltava talento. Faltava ver. Não é assim com tudo na vida?

Lembrei de Tânia, que me passa as receitas explicadinhas, mas na incapacidade de conquistar o sabor ideal, pergunto: “o que to fazendo errado?”.

“Deve estar faltando amor”.

Acertar o ponto é entender o sinal da comida. Acertar a água é aprender o alfabeto das plantas.

Os humanos não fogem à regra. O olhar murcho, o tom seco, o excesso de sombra nos assuntos mal-resolvidos, a falta de fruto.

É preciso ajustar a rega, tirar do canto esquecido, replantar a relação. Nunca mais abri o caderno das dicas, faz mais sentido olhá-las de pertinho.

Certa vez, pouco antes de assassinar um cacto, uma amiga me disse: “ele vai sentir o carinho se você se preocupar em cuidá-lo”.

“Juro que cuidei”, defendi-me no seu velório.

Querer cuidar não resolve, porque corremos o risco de só ouvir nossas intenções e esquecer do que o outro precisa.

Amar sem ver é bobagem.

Se vocês têm mais sorte do que as plantas, que não escolhem seus canteiros, lembrem de não criar raízes onde não puderem ser vistos.

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